terça-feira, 1 de abril de 2008

`À atenção do PGR e de Maria josé morgado

Dívida fiscal
Ferreira Leite despachou a favor do Benfica

04.06.2002 - 10h31 João Ramos de Almeida

O Governo negou ter feito um acordo com o Benfica. A ministra das Finanças mostrou-se chocada com as acusações de conluio. Na verdade, Manuela Ferreira Leite despachou como o clube pretendia.

As acções da SAD foram aceites como garantia para impugnação da sua dívida fiscal do Benfica.
Ao contrário do que afirmou aos deputados, a ministra de Estado e das Finanças, Manuela Ferreira Leite, teve uma intervenção directa no "dossier" fiscal do Sport Lisboa e Benfica. A ministra assinou um despacho em que corroborou o parecer da administração tributária sobre a avaliação das acções da sociedade desportiva (SAD) do clube. Dessa forma, interpretou a lei no sentido favorável ao clube, ao aceitar esses títulos como uma garantia idónea para a impugnação da dívida fiscal por parte do Benfica.

O despacho não é oficialmente divulgado porque, segundo fonte do Ministério das Finanças, poderia revelar aspectos da vida fiscal do clube e, por isso, quebraria o sigilo fiscal desse contribuinte. Mas como o PÚBLICO apurou, a ministra assinou o despacho em que deu o seu assentimento à forma como a administração tributária - incluindo o anterior director-geral dos impostos - propôs avaliar as acções da SAD do Benfica à luz das regras do imposto sucessório.

A ministra Manuela Ferreira Leite justifica essa sua decisão por respeito à autonomia da administração tributária sobre esse tipo de matérias. A sua assinatura seria, desse forma, um mero deferimento do pedido da administração. Mas, na verdade, a ministra poderia ter recusado dar o seu assentimento e exigir que a administração bancária exigisse ao clube uma garantia bancária como determina, em primeiro lugar, o Código do Processo e do Procedimento Tributário. Só que não o fez.

Esta despacho vai ainda contra o sentido das palavras do primeiro-ministro no Parlamento em que remeteu, na passada sexta-feira, qualquer responsabilidade para o Governo socialista. O próprio porta-voz do Ministério das Finanças não admitiu, nesse dia, a existência de algum despacho da ministra que viabilizasse a impugnação nos termos solicitados pelo clube. O comunicado divulgado nessa tarde afirma só que "desde que o Governo tomou posse não foi proferido qualquer despacho ministerial autorizando o pagamento, por qualquer contribuinte, de dívidas fiscais com acções".

O Governo negou ter feito algum acordo com o Benfica, mas omitiu que tinha precisamente despachado no sentido defendido pelo próprio clube. Defesa essa, aliás, feita pelo actual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Vasco Valdez, junto do anterior Governo quando era então advogado representante do clube.

Um caso delicado

A história da impugnação da dívida fiscal do Sport Lisboa e Benfica vem desde o governo socialista e revela a dificuldade que os partidos do poder têm de exigir as regras legais a contribuintes como os clubes de futebol. Revela igualmente a extrema sensibilidade com que os responsáveis governamentais abordam publicamente estes casos.

O caso do Benfica é apenas mais um episódio no rol de situações de permissividade dos representantes do Estado para com os clubes de futebol. Em 1998, o então presidente Vale e Azevedo negociou directamente com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais o pagamento faseado das duas dívidas fiscais. Entregou nessa altura um cheque de 254 mil contos e garantiu um "empenhamento forte desta direcção em ser um contribuinte como qualquer outro". Mas, no início de 2001, a nova direcção do Benfica, que afastou Vale e Azevedo, autodenunciou uma dívida fiscal gerada entre 1998 e 2000, num valor próximo dos dois milhões de contos.

A autodenúncia incomodou a administração por não ter detectado essa dívida, quando havia precisamente uma comissão de acompanhamento dos clubes no âmbito da secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, criada em Março de 1998.

Perante esse facto, o director-geral dos impostos veio a terreiro assumir o erro. A comissão de acompanhamento foi substituída, mas os deputados do PS impediram o ministro das Finanças, Joaquim Pina Moura, de ir ao Parlamento falar sobre o assunto. Em plenário, os deputados socialistas ameaçaram os deputados social-democratas de contar o que se passara durante o consulado dos governos do PSD liderados por Cavaco Silva.

A direcção do clube garante que, nos contactos prévios com o director-geral dos impostos, António Nunes dos Reis, este terá assegurado um pagamento da dívida a prestações, quando a lei determina que uma dívida autodenunciada deve ser paga na íntegra. Nunes dos Reis negou, mas admite ter lido um documento apresentado pelo Benfica.

Quando as autoridades se mostraram firmes na versão de um único pagamento, a direcção do Benfica deu uma conferência de imprensa para contestar essa versão dos acontecimentos e mostrou-se disponível para contar o que aconteceu. Mas mais tarde, e apesar da dívida ter sido autodenunciada, o ministro das Finanças aceitou que se procedesse a uma inspecção para quantificar a dívida e que as notificações ao clube fossem feitas à medida que se quantificasse a dívida de cada ano em causa. Ou seja, aceitou, na prática, um pagamento a prestações que a lei contrariava.

Apesar do clube não ter entregue o IRS descontado nos vencimentos dos futebolistas, tal como espelha o relatório da Delloite & Touche, o Ministério das Finanças declarou que não havia razão para um inquérito-crime por abuso de confiança fiscal aos dirigentes do Benfica. Aliás, este foi apenas mais um episódio entre o Ministério Público (MP) e a administração fiscal sobre a obrigatoriedade ou não de comunicação ao MP dos casos de crime detectados. No caso do Benfica, teve de ser o ministro das Finanças, Oliveira Martins, a quase intimar o director-geral a comunicar o caso ao MP.

Quanto às dívidas autodenunciadas, o clube apenas foi notificado para pagar 1998 quase no final de 2001, num valor aproximado de um milhão de contos. E, apesar de ter sido o clube a assumir essa dívida, a mesma direcção contestou-a na parte dos juros. Alegava-se que como tinha sido o clube a denunciar-se que não haveria direito à cobrança de juros. Mas outros dirigentes admitem que se tratou de um expediente para protelar o pagamento.

Foi por volta dessa altura que o Benfica solicitou uma a passagem de certidão da administração fiscal atestando a sua situação de não devedor, com vista à assinatura do contrato relacionado com as obras do estádio. Ora, essa certidão só poderia ser passada se a impugnação da liquidação estivesse conforme a lei.

O problema da garantia

Para realizar essa impugnação, o clube tinha de entregar garantias. O artº 1999 do CPPT afirma que, na impugnação, "caso não se encontre já constituída garantia, com o pedido deverá o executado oferecer garantia idónea, a qual consistirá em garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer meio susceptível de assegurar os créditos do exequente". Ora, em vez disso, o clube entregou acções da SAD, não cotadas, num total de 20 por cento do capital.

A administração fiscal ficou, assim, com o assunto delicado entre mãos. Em primeiro lugar, as acções são de valor mais do que discutível. Em segundo lugar, a própria lei das sociedade desportivas não abre a possibilidade de o Estado poder deter acções de sociedades desportivas, apenas prevendo os casos das regiões autónomas e de associações de municípios. E isso era o que aconteceria em caso de execução da garantia.

O assunto começou a ser estudado e demorou meses até se chegar a uma conclusão. Como tal, a administração fiscal escusou-se a legitimar a situação e passou uma certidão em que se referia que o Benfica não estava regular do ponto de vista fiscal. Mas apesar disso, o contrato para construção do clube foi assinado, em Janeiro passado, com pompa pelo então ministro do Desporto e Juventude, José Lello.

Mas em Março, o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Ricardo Ferreira Fernandes assinou um despacho que flexibilizou as regras de prestação de garantias (ver caixa). Desconhece-se se foi ao abrigo deste despacho que a ministra deu o seu aval, mas o certo é que a administração fiscal descobriu um critério de avaliação das acções da SAD. Com base nas regras do imposto sucessório, avaliou-se os títulos não ao ser valor nominal de cinco euros, mas de três euros por acção.

A proposta da administração fiscal foi deixada pelo anterior Governo para o seguinte. O ex-ministro das Finanças Oliveira Martins afirmou ao jornal "Expresso" que, quando se aperceberam que a situação fiscal do Benfica se tornara tema de campanha eleitoral -depois do jantar de apoio a Durão Barroso em que Vilarinho esteve presente -decidiu nada fazer. O despacho da ministra Manuela Ferreira Leite coloca um ponto final no pedido do Benfica. Aceita as acções da SAD como boas e, com elas, toda a situação fiscal do clube regularizada.
http://ww2.publico.clix.pt/print.aspx?id=148689&idCanal=undefined

Pelo futebol morre o peixe

04.06.2002 - 10h45 José Manuel Fernandes
A história que se conta nestas páginas é pouco edificante - e mostra como o futebol e os grandes clubes continuam a ter um poder que a razão desconhece.

É uma história que mancha tanto este como o anterior governo, um porque começou a negociar uma má solução, outro porque foi divulgando meias-mentiras, ou verdades incompletas, para acabar por viabilizar a má solução que vinha de trás.

No retrato, e porque é este o Governo que temos e o que temos de julgar com mais severidade - o outro já foi julgado a 17 de Março -, a verdade é que a forma tortuosa encontrada por Manuela Ferreira Leite para viabilizar a entrega de acções da SAD do Benfica como garantia de pagamento de uma fracção em disputa de uma dívida legal é fatal. É fatal porque acabou por mostrar o rabo do gato que estava escondido. E é sobretudo fatal porque afecta a sua imagem de rigor draconiano.

O Governo já tinha um "calcanhar de Aquiles" neste processo: a presença no seu seio, como secretário de Estado, de Vasco Valdez, precisamente o homem que negociara com o anterior Governo e com a administração fiscal em nome do Benfica. Agora, e como à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria, a forma trapalhona e comprometedora como Ferreira Leite geriu o "dossier" desde o debate parlamentar da passada sexta-feira mostrou fragilidades que farão todos os contribuintes interrogar-se sobre se hoje, como no passado, é pelo "futebol que morre peixe", isto é, se quando se chega ao futebol o Estado continua a encolher as garras e a esquecer o rigor.

Se assim for é um triste sinal, até porque foi pelo futebol e em nome do futebol que o primeiro Governo de António Guterres sofreu a sua primeira grande derrota política: o chumbo do "totonegócio".

Independentemente da discussão técnica sobre a validade, ou não, da decisão da administração fiscal agora avalizada pela ministra, o importante é o sinal dado à opinião pública. O sinal de que, no fisco, continua a haver filhos e enteados.

Para este Governo, nesta altura, isto é especialmente grave. Para Guterres o "totonegócio" foi um epifenómeno rapidamente esquecido porque não estava no coração das prioridades governativas. Para Barroso é diferente. Como se pode ver pelas sondagens, os portugueses estão divididos e confusos. Muitos continuam a crer que colocar ordem nas contas públicas é a principal prioridade do Governo - mas a maioria não está a gostar de isso estar a ser feito subindo impostos como o IVA. Pedir sacrifícios a uns e condescender com outros é, neste quadro, politicamente suicida - e é assim que o cidadão comum está a ler o que se passou com o Benfica.

Mais: o tempo em que o clubes eram intocáveis também já lá vai. Haverá sempre energúmenos para se manifestarem se um Governo mandar penhorar um estádio e as suas retretes, mas a maioria aplaudirá. Essa maioria já percebeu que há clubes que vivem muito acima das suas possibilidades e não querem mais que o Estado lhes ponha a mão por baixo.

Havendo rigor, tem de haver rigor para todos. Sem medo. Sem recuos. Até porque, imaginando nós o que por aí vai na construção dos estádios para o 2004, não tarda que pela primeira brecha que se abrir na firmeza governamental se precipite nova enxurrada de "buracos orçamentais".

Ora esta decisão de Pilatos de Manuela Ferreira Leite já abriu essa brecha. E a ministra cometerá um erro fatal se não o reconhecer: os erros do passado e os pecados do anterior Governo não podem servir-lhe de desculpa. Para além de que é feio atirar com a responsabilidade para os seus subordinados da administração fiscal.
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=148693

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